Povo Hup'däh escreve carta denunciando suicídios e reivindicando direitos
Carta de reivindicação da comunidade Hup´däh - Santa Cruz do Cabari
A Coordenação Regional do Rio Negro - CR Rio Negro
A Fundação Nacional do Índio - FUNAI
A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro - FOIRN
Ao Ministério da Educação - MEC
A Secretaria Estadual de Educação e Cultura - SEDUC
A Secretaria Municipal de Educação e Cultura - SEMEC
Ao Ministério da Saúde - MS
Casa de Saúde e Apoio a Saúde Indígena - CASAI
Ao Distrito Sanitário de Saúde Indígena - DSEI
Ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate á Fome - MDS
Ao Ministério da Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos - MIMD
Ao Ministério Público Federal do Amazonas - MPF
A Sexta Câmara de Minorias do Ministério Público Federal - MPF
Nós, Hup´däh de Santa Cruz do Cabari, reunidos em assembleia no dia 02/04/16, cobramos do poder público municipal, estadual e federal, ações imediatas em nossa comunidade objetivando a melhoria de nossa condição de vida tanto em nossa comunidade quanto na cidade, respeitando o direito a nossa autodeterminação, organização social, política e territorial.
Afirmamos que a precariedade dos serviços públicos oferecidos ao nosso povo, classificado como de recente contato pela FUNAI, afeta negativamente nosso modo de vida, violando duplamente nossos direitos conquistados por meio de ampla mobilização dos povos indígenas. Por um lado, a má qualidade dos serviços que recebemos está em desacordo com o espírito da Constituição de 1988, chamada também de "Constituição Cidadã", desrespeitando especialmente os artigos 231 e 232 de nossa carta magna, que protegem os direitos da população indígena. Por outro lado, descumpre acordos e tratados internacionais firmados pelo Estado brasileiro, sendo o mais importante a Convenção 169 da OIT, instrumento ratificado pelo Brasil em 2004.
Ao longo dos últimos anos estamos acessando documentação básica e alguns benefícios sociais como salário-maternidade, o programa Bolsa Família, e aposentadoria. Contudo, para alcançarmos essas políticas passamos por severas dificuldades, conforme relataremos adiante, de modo que elas são insuficientes para garantia de nossos direitos. Desde o ano 2000 até o hoje, dezenove jovens de nossa comunidade, entre mulheres e homens, se suicidaram por meio de envenenamento e se enforcando. Esse ano, um Hup´däh de Santa Cruz do Cabari, faleceu vítima de afogamento em São Gabriel da Cachoeira, onde estava acampado durante meses em busca de documentação e acesso a programas sociais.
Diante desse cenário, consideramos que compete ao Estado brasileiro zelar pelo cumprimento de nossos direitos, respeitando nosso modo de vida. Apresentamos a seguir os problemas que estamos vivenciando em nossa comunidade, cobrando ao final, políticas públicas adequadas a nossa realidade. Estamos seguros de que a violação dos direitos indígenas é objeto de penalidade no Brasil e em cortes internacionais. Por isso, exigimos urgentemente ações do poder público de modo a evitar a ocorrência de novos óbitos em razão do desrespeito que sofremos dia a dia. Assim, poderemos usufruir de nosso território garantindo que continuemos pescando, caçando, casando, plantando nossas roças, e criando nossos filhos nas gerações futuras, bem como acessando nossos direitos tanto na cidade quanto em nosso território de origem.
1. Problemas presentes
Santa Cruz do Cabari é uma comunidade indígena no médio Uaupés, localizada na margem esquerda do igarapé Japú, dentro dos limites da terra indígena alto Rio Negro, território pertencente ao município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas. Além de Santa Cruz do Cabari estão distribuídas outras nove comunidades Hup´däh ao longo do igarapé Japú. São elas: Vila Nova, Jacaré Banco, Jacaré Banquinho, Piracema, Santo Expedito, Santa Rosa, Santo Atanásio, Água Viva e Boca do Traíra. Somente em nossa comunidade vivem hoje 145 pessoas, entre crianças, jovens, adultos e idosos, totalizando 26 famílias, habitando 19 casas.
Em nossa comunidade temos ao todo 4 professores Hup´däh, que realizaram o curso de magistério indígena, e que hoje ensinam em nossa escola. Há ainda recém-chegado em nossa comunidade um professor Pira-Tapuya, que ministrava aulas em uma escola Hup´däh no rio Papuri. Oferecemos aqui aulas de português, matemática, artes, geografia, história, língua hup, entre outras disciplinas, para um total de 60 alunos Hup´däh, da pré-escola ao nono ano. Além de estudantes de Santa Cruz do Cabari, temos em nossa escola alunos de Piracema, Jacaré Banco e Jacaré Banquinho. Destas comunidades, somente a última não tem escola, sendo que as outras duas contam com o ensino apenas até o quinto ano. Já se formaram vinte e um alunos em nossa escola, outros quinze estão se formando esse ano.
Apesar de tudo isso, a educação está longe de estar conforme desejamos. A escola não tem sede própria funcionando improvisada em nossa capela e na maloca comunitária. As aulas, previstas para iniciarem no dia 21 de abril, começaram atrasadas por uma série de dificuldades. Estamos chegando ao meio do ano e até o momento não recebemos da Secretaria Municipal de Educação - SEMEC material para as aulas, merenda escolar, nem lista de alunos matriculados. As carteiras da escola são antigas, muitas não estão em bom estado de conservação. Não há livros em língua hup, os alunos não recebem uniforme. Os estudantes de Piracema, Jacaré Banquinho e Jacaré Banco ainda não foram avisados sobre o começo das aulas, já que o Agente Pedagógico Indígena (API), responsável pela organização das aulas, não compareceu na comunidade. Outro problema é o deslocamento desses alunos já que para chegar às aulas tem que andar longas distâncias durante horas, muitas vezes atravessando trilhas fechadas sob o sol quente ou mesmo chuva, correndo ainda o risco de serem picados por cobra.
Fora isso, alguns indígenas de nossa comunidade permaneceram acampados em São Gabriel, esperando do final do ano passado até os primeiros meses desse ano, a realização do curso do magistério indígena, o que de fato não ocorreu. O contrato dos professores Hup´däh, assinado na SEMEC, é temporário, tendo duração apenas de um ano. Com isso, somos forçados a nos deslocar anualmente até a sede do município para renová-lo, o que costuma durar muito tempo. Esse ano está previsto a realização de novo concurso para professores, no entanto, os Hup´däh não foram contemplados. Em audiência pública realizada esse ano na sede da FOIRN no dia 02 de março, da qual a professora Tereza Saúva, indígena Hup´däh de nossa comunidade falou como liderança, o procurador do Amazonas, Fernando Soave, solicitou a retirada das escolas Hup´däh do atual concurso, recomendando a realização de concurso diferenciado para nosso povo, assim como para os Yuhupdëh e Yanomami.
No entanto, isso não é suficiente. Já temos alunos formados em nossa comunidade até o nono ano. Eles gostariam de continuar os estudos, no entanto, para cursar o segundo grau eles são obrigados a se deslocar até Iauraretê, cidade na fronteira com a Colômbia, ou mesmo seguir para São Gabriel da Cachoeira, afastado de nossa comunidade e de seus parentes. Nesses locais, recebem aulas com alunos de outras etnias, que zombam e discriminam os Hup´däh, o que ocasiona muitas vezes brigas, e abandono dos estudos.
Para além da educação, enfrentamos também muitas dificuldades na área de saúde. Em Santa Cruz do Cabari dispomos de um agente de saúde indígena (AIS), que é Hup´däh. Ele atende nossas famílias e mais nove comunidades no igarapé Japú, que são de difícil acesso tanto no período de rio seco ou cheio. Para alcançá-las, ele conta com uma embarcação simples que possui motor de baixa potência. É comum o trajeto do igarapé estar fechado, tendo que se desviar de troncos, galhos, ou mesmo de bancos de areia, o que torna a viagem demorada e perigosa. No igarapé Japú somente a comunidade Santa Cruz do Cabari tem aparelho de radiofonia, que nem sempre está funcionando, já que não recebe manutenção periódica do Distrito Sanitário de Saúde Indígena – DSEI. Quando conseguimos chamar a equipe de saúde por radiofonia, dificilmente eles chegam para socorrer os pacientes. Ano passado, a equipe de saúde esteve presente somente uma vez em nossa comunidade, não retornando desde então. Nos casos de doenças mais graves nos deslocamos até Iauraretê, onde fica o polo base Médio Uaupés, gastando em média quatro horas para ir até o hospital e outras quatro para retornar a comunidade, no entanto, nem sempre conseguimos atendimento adequado ou acesso a medicamentos.
Principalmente as mulheres carregam pesados cestos (aturás) com maniva, japurá, abacaxi, entre outros produtos de nossa plantação, além de frutas silvestres, assim como carregam panelas com água para o consumo familiar. Os homens ajudam no trabalho, caçando, abrindo e queimando roças, construindo casas, também buscando lenha para cozinhar. Trabalhamos diariamente em nossas roças sem equipamentos agrícolas em boas condições de uso. Ao longo dos anos, surgem dores nas costas e nas articulações do corpo, em decorrência do trabalho árduo e repetitivo, sendo os mais afetados as pessoas idosas, que chegam a uma idade em que o labor se torna difícil. É comum ainda ocorrerem acidentes e picadas de cobras venenosas nas roças, problema para o qual não temos medicamentos. Assim como as roças, muitas vezes a água para o consumo fica longe de casa. Em Santa Cruz do Cabari e ao longo de todo igarapé para banhar, lavar roupa, louça, cozinhar e beber. Com isso, principalmente as crianças adoecem, apresentando vômitos e diarreia, muitas vezes acompanhada de febre, em virtude da ausência de água tratada.
Nos últimos anos temos nos deslocado para Iauraretê, e principalmente para São Gabriel da Cachoeira, em busca de documentação e benefícios sociais. Passamos muita dificuldade na cidade em decorrência do tempo prolongado fora da comunidade. Em São Gabriel da Cachoeira uma lata de farinha custa 80 reais no mercado, enquanto em Iauraretê, o valor é ainda maior, já que não gastamos menos de 100 reais para conseguir a mesma quantidade desse produto. Em relação ao combustível, gastamos quase cinco reais para conseguir gasolina na primeira cidade, enquanto na segunda ela está custando por volta de oito reais. O preço elevado desses artigos prejudica nossa alimentação e também o deslocamento de nossa comunidade até a cidade.
Entre o final do ano passado até o mês de abril desse ano, apenas cinco pessoas permaneceram em nossa comunidade. Durante esse período, a maioria das famílias acampou vários meses em São Gabriel da Cachoeira, sem alimentação adequada, e em condições insalubres, esperando pagamento do Bolsa Família, salário-maternidade, aposentadoria e acesso a documentação, em muitos casos, sem sucesso. Ao retornarem a comunidade, as roças estavam descuidadas, cercadas por mato alto, o que dificulta e atrasa novos plantios. Ainda temos famílias sem acessar os programas sociais do governo e documentação.
A comunidade de Santa Cruz do Cabari está crescendo, crianças nascendo, casas novas sendo construídas. No entanto, os caranazais para construção de casas estão escasseando. E ainda, não dispomos de caça e peixe suficiente a nossa alimentação. Diante de tudo isso que colocamos, reivindicamos do poder público as seguintes iniciativas em nossa comunidade:
Construção de escola com nível de segundo grau, compra de carteiras novas, armários para guardar livros, uniforme, merenda escolar, material didático em nossa língua (hup) mesas, material para cozinha (panelas, facas, garfos e colheres);
Garantir gasolina para o deslocamento até a escola dos alunos de outras comunidades;
Atendimento médico regular, medicamentos e aquisição de motor 15 para nosso agente de saúde fazer atendimentos;
Instalação de orelhão e radiofonia nas comunidades ao longo do igarapé Japú, bem como constante manutenção de nosso equipamento;
Construção de casa de apoio;
Compra de forno e materiais agrícolas (facão, pás, serrote, machado, entre outros itens);
Instalação de caixa d´água e captação de água da chuva, bem como placa com energia solar;
Organização de mutirão de documentação básica para atender nossa comunidade e demais no igarapé Japú;
Por fim, informamos que essa “Carta de reivindicação da comunidade Santa Cruz do Cabari” se soma a outros documentos encaminhados ao poder público. Por um lado reforça o pedido de construção de casa de apoio para etnia Hup´däh entregue por lideranças de nossa comunidade à prefeitura de São Gabriel da Cachoeira em janeiro de 2014, por outro, reforça o relatório encaminhado pela FOIRN ao Ministério Público do Amazonas no dia 02 de Março de 2016, em audiência pública.
Amazonas, Maio de 2016
Assinatura dos Hup'däh: