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Nota Técnica: “O sonho vira pesadelo”: sobre as violações do direito à Saúde Indígena no Brasil (*)

“Descaso na Saúde Indígena: O sonho vira pesadelo” são as palavras de revolta das lideranças indígenas presentes numa nota divulgada recentemente pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI2. No Brasil inteiro, no mês de agosto, organizações indígenas e indigenistas vêm se reunindo para denunciar a dramática situação da atenção à saúde promovida pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), que, em vez de garantir o acesso a serviços e tratamentos de qualidade, faz com que as crianças indígenas tenham três vezes mais chances de morrer do que as crianças não indígenas no Brasil. Os diagnósticos das lideranças indígenas apontam a má gestão e a terceirização dos serviços como causas principais desse quadro.


De acordo com a Constituição Federal de 1988, a saúde é direito de todos e dever do Estado. Em 2002, a Política Nacional de Saúde foi complementada pela Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) com o reconhecimento da necessidade de se prestar atenção diferenciada a essa população. A atenção diferenciada colocava-se como garantia para equidade, integralidade e universalidade da atenção à saúde, princípios do Sistema Único de Saúde - SUS3.


A atenção diferenciada diz respeito a um modo de organização do serviço e à oferta de tecnologias que considerem as especificidades étnicas, culturais, sociais e territoriais dos povos indígenas, cujos serviços são de responsabilidade da União, Estados e municípios. A atenção à saúde é direito de todos os cidadãos indígenas e dever do Estado em todas as suas esferas administrativas.


Em mais de uma década de implementação da PNASPI, as comunidades indígenas continuam a chorar a morte de suas crianças, principalmente por doenças preveníveis, como as doenças diarreicas e infecções respiratórias agudas. No período de 2007 a 2010, para cada 1000 crianças nascidas vivas, a taxa de mortalidade infantil brasileira na população total caiu de 20,01 crianças para 16,0. Para o mesmo período, a taxa para a população indígena caiu apenas de 46,9 para 42,6, mantendo-se extremamente alta levando em conta que o índice considerado aceitável pela OMS é de 10 mortes a cada 1000 nascimentos (Fonte: IDB/DATASUS/MS; SESAI/MS).


Há que resguardar os avanços na atenção à saúde indígena com o crescimento gradual do orçamento voltado para a Promoção, Proteção, Vigilância, Segurança Alimentar e Nutricional e Recuperação da Saúde Indígena. Todavia, inquieta analisar esses dados de mortalidade infantil entre crianças indígenas, cujo índice é quatro vezes maior do que o considerado aceitável pela Organização Mundial de Saúde (OMS).


Segundo dados da SESAI, o orçamento da Saúde Indígena que era de R$ 684,55 milhões em 2012, passou a ser de R$ 920 milhões em 2013 – um aumento de 25,6%4. Para o ano de 2011, com relação aos recursos humanos, a SESAI apresenta o aumento de 78% para profissionais com nível superior, 76% para profissionais de nível médio e 28% para os de nível auxiliar (SESAI, 2011).


No entanto, apesar do aumento dos recursos financeiros e humanos que compõem o Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, os agentes indígenas de saúde continuam a reclamar da falta de medicamentos; os barqueiros continuam a revoltar-se diante dos salários baixos e dos pagamentos sempreatrasados; as equipes continuam a deixar de fazer atendimentos devido à falta de transporte e de recursos; os conselheiros de saúde continuam a não ter eco de suas denúncias e deliberações nas gestões dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).


No último 07 de agosto, após uma semana de reuniões entre Controle Social, profissionais do DSEI-RN e lideranças indígenas, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) divulgou uma Carta Pública dos Povos Indígenas do Rio Negro sobre a Saúde Indígena

. No documento, a má gestão pública dos DSEIs é identificada como a origem dos demais problemas que impactam na qualidade do atendimento nas comunidades. Nas palavras das lideranças: “O que observamos é que esses gestores, embora desempenhassem seu papel, não conseguiram organizar devidamente os serviços administrativos e garantir o funcionamento do DSEI, tanto na sede quanto nas aldeias. Como consequência dessa conjuntura vemos o grande crescimento dos problemas de saúde, que se reflete principalmente naqueles que vivem nas comunidades. Durante todos esses anos, a falta de planejamento logístico e estratégico das a tividades do DSEI contribuiu para a asfixia do funcionamento da Instituição” (Fonte: http://foirn.wordpress.com/, acesso em: 13/08/2014). Em 2013, o DSEI-RN foi denunciado ao MPF/AM pela omissão que levou à morte de crianças da etnia Hupd’äh. O MPF/AM estipulou uma multa diária de 30 mil reais caso o DSEI-RN continuasse a não realizar os atendimentos nas aldeias, e a não disponibilizar medicamentos para o tratamento dos pacientes5.


A execução das ações de atenção à saúde nas aldeias e comunidades indígenas é realizada por meio de administração indireta por meio de convênios. A terceirização dos serviços apresenta-se como um dos principais fatores que têm levado à manutenção deste quadro dramático e de privação de um direito fundamental às populações indígenas, a Saúde. Hoje, apenas três organizações disponibilizam os serviços de Promoção, Proteção, Vigilância, Segurança Alimentar e Nutricional e Recuperação da Saúde Indígena para os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Ou seja, apenas essas três ter ceirizadas são responsáveis pela contratação da maior parte dos profissionais de saúde que atendem a população indígena. Os valores repassados em 2013 pela SESAI às terceirizadas chegaram a R$ 453,92 milhões, aproximadamente 50% de toda a verba da saúde indígena,de acordo com a análise da ONG INESC sobre os dados do Portal da Transparência6.


Com contratos precarizados, os trabalhadores de saúde que atuam na saúde indígena, muitos deles recém-formados e em suas primeiras experiências profissionais de atenção em saúde, deparam-se com realidades que escapam à lógica apresentada em suas formações universitárias e técnicas, centradas na densidade tecnológica dos hospitais. Enfermidades altamente preveníveis e de baixa complexidade não conseguem ser tratadas em tempo oportuno nas aldeias e comunidades e são as principais causas de morte entre crianças até 1 ano de idade. No que diz respeito à qualidade do serviço prestado, deve ser ressaltada a importância da formação continuada e permanente dos trabalhadores da saúde que atuam em contextos interculturais entre indígenas, somado principalmente a necessidade de um modelo de atenção articulado a um modelo de gestão que privilegie a autonomia dos trabalhadores, gestores e indígenas para a construção de estratégias conjuntas de enfrentamento aos agravos em saúde.


A organização do serviço dos DSEIs não deve ser considerada apenas como uma questão logística, em um mero ordenamento de objetos (remédios, equipamentos, instrumentos) e pessoas (usuários e trabalhadores). Ao contrário, a organização deveria dar-se a partir das necessidades reais dos indígenas, a partir da vigilância de saúde, com a utilização de métodos epidemiológicos para monitoramento do quadro sanitário, com a elaboração de estratégias para assistência construídas coletivamente e com a corresponsabilização no cuidado entre os diversos níveis de atenção no SUS.


Não é possível defender que haja um modelo de atenção construído sob bases epidemiológicas em atuação na saúde indígena, visto a constância de “missões emergenciais” para enfrentamento de doenças diarreicas no Vale do Javari ou no Alto Rio Purus, por exemplo. Também se torna difícil falar sobre corresponsabilização no cuidado quando o Incentivo à Atenção Especializada aos Povos Indígenas (IAEPI) não foi revisto pela SESAI. Existem hospitais que recebem o incentivo e se negam a assistir indígenas enquanto outros não o recebem e os atendem. Ressalta-se que o incentivo não é condição para a atenção especializada aos indígenas, pois a média e alta complexidade no SUS é referência ao Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, mas um adicional para que o serviço se qualifique na atenção diferenciada preconizada na PNASPI.


A saúde não pode ser encarada como mercadoria e bem de consumo. A saúde é propulsora de cidadania e deve atuar em defesa da vida. Vida essa cuja decisão não se encerra entre trabalhadores e gestores de políticas, mas que deve ser pensada a partir do diálogo, do vinculo, do acolhimento, da escuta e da produção de autonomia do sujeito.


Recentemente, manifestando o objetivo de dinamizar a contratação de profissionais de saúde e de manter a SESAI apenas como propositora de políticas de saúde indígena, o governo federal elaborou a proposta de transferência da prestação de serviços de saúde e saneamento indígenas para um novo órgão, o Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI). Diante das críticas e denúncias apresentadas pelo movimento indígena e por entidades indigenistas, o Ministério Público Federal (MPF) divulgou nota (09/09/14) mostrando que a proposta do INSI fere princípios constitucionais ao transferir a execução da saúde indígena do SUS para uma pessoa jurídica de direito privado, fora da jurisdição do MPF, e ao prejudicar o controle social, já que não prevê a participação de número suficiente de representantes indígenas no conselho deliberativo7.


Nesse sentido é que formulamos a pergunta: será que a proposta do INSI não está reduzindo a atenção aos povos indígenas a um mero fluxo de objetos e técnicas em vez de produzir interlocução, confiança, respeito, aprendizado, afeto e ética, princípios fundamentais para a atuação em contextos interculturais? Não será essa uma das questões que têm mobilizado as mais diversas organizações indígenas a elaborarem cartas, notas de repúdio e manifestações?

Fórum sobre Violações de Direitos dos Povos Indígenas

São Paulo, setembro de 2014.


Notas

* Publicado originalmente no site da ANDHEP - Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (http://www.andhep.org.br/arquivos/dh_forum_indigena_nota_tecnica.pdf). Mais sobre o Fórum em http://arace.emnuvens.com.br/arace/article/view/15/15. Contato: fórum.direitos.indigenas@gmail.com

2 Nota do CIMI contra a privatização da Atenção à Saúde Indígena – ago/14: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=7652

3 Para uma melhor contextualização ver: Constituição Federal (1988), das leis do SUS (1990): Leis 8.080 e 8.142; Lei Arouca - Lei nº. 9.836 (23/09/99) – que cria o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS); edição da Portaria 254 (31/01/2002) que aprova a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas; e Publicação do Decreto nº. 7.336/2010 que criou a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) do Ministério da Saúde e transferiu as ações de saúde indígena da Funasa para essa secretaria.



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